ENTREVISTA

Jazz com cor e sabor Versão para impressão

No princípio era o Hot Clube. A história de Mário Delgado, 45 anos de idade e um percurso que o coloca entre os melhores guitarristas portugueses da actualidade, poderia começar assim. Foi na histórica sala da Praça da Alegria, já lá vão 25 anos, que ele deu os primeiros passos como músico de jazz. Quem o vê, na rua ou em palco, não consegue imaginar que, por trás daquele homem com ar de menino tímido está um talentosíssimo músico, dos raros que, ao fim de tantos anos, mantém intacta a capacidade de se espantar com as coisas boas que ainda há no mundo. É muito bom ouvi-lo tocar. E conversar com ele também.
– Hot Clube. Foi aí que tudo começou?
– Sim. Quando fui estudar música, entrei para o Hot, com o meu amigo Pedro Madaleno. Foi para aí em 1982. Inscrevemo-nos nas aulas do Hot, e comecei a tocar. Quer dizer: eu já tocava um bocado e queria estudar música, mas foi esse primeiro ano no Hot Clube que mudou a minha vida toda.
– Mudou, como?
– Eu vi que, se calhar, a música era uma coisa de que eu gostava, enquanto que o resto – eu ia estudar Engenharia – era apenas um «traçado genético», pelo facto de o meu pai e o meu irmão serem engenheiros, que eu achava que devia seguir. Mas não sabia muito bem sequer o que isso era...
– Foi então nessa altura que o engenheiro acabou e nasceu o músico?
– Foi um ano depois. Eu ia entrar para Engenharia, cheguei a inscrever-me na Faculdade, e andei uns meses em que um dia dizia que ia desistir, no dia seguinte já dizia que não. Mas acabei por desistir...
– Mas o gosto pela música já vinha de trás?
– Sim, sim. O meu gosto pela música deve-se sobretudo ao meu irmão mais velho. Temos uma diferença de 14 anos, ele era grande consumidor de rock (e ainda hoje é) e viveu tudo aquilo dos anos 60. E eu desde que nasci que ouvia a música que o meu irmão tinha. Devo ter ouvido todos os discos dos Beatles ou dos Stones na altura em que eles saiam – se bem que cá eles chegavam com algum atraso. Brincava a ouvir isso. E mais tarde, quando comecei a interessar-me por música, aqueles discos eram uma coisa que eu já conhecia sem saber porquê. Deixei de brincar e passei a coleccionar discos. (risos) E depois comecei a «chatear» os meus pais para me comprarem uma guitarra. Foi assim que tudo foi começando.
– Tiveste a primeira guitarra com que idade?
– Pr’aí aos 14 anos. Tive a guitarra, mas não havia dinheiro para ter aulas. Fui aprendendo com os colegas do liceu...
– Nessa altura ainda não pensavas que ias ser músico. Como é que foi a reacção dos teus pais quando decidiste abandonar o curso em que tinhas acabado de entrar? Imagino que tenha havido um pequeno drama familiar...
– Não, o problema é que não houve nenhum drama. O meu pai disse-me: «Olha, a vida é tua, se achas que é melhor assim, faz isso.» Não me chateou nada, só que me deixou com uma carga de responsabilidade que foi como se, de repente, ele me tivesse posto fora de casa (risos). Foi como se me dissesse: «Olha, agora estás por tua conta.»
– E tiveste que «fazer pela vida»...
– Sim. Naquela altura não havia a quantidade de músicos que há hoje. Havia músicos de muita qualidade – como também há hoje – mas o meio era muito mais pequeno do que é hoje em dia. Ou seja: era mais fácil para um músico jovem, com pouca experiência, começar a tentar fazer qualquer coisa. Se bem que hoje em dia também é mais fácil, se calhar, arranjar escolas que ensinam música, que não têm a ver com o conservatório ou com a música clássica. Na altura, a única escola que havia era o Hot Clube.
– O jazz foi uma opção, já na altura?
– Sim. Eu ouvia muito rock, até que um dia ouvi jazz tocado na guitarra. O jazz tocado por saxofones, por trompetes, nunca foi uma coisa que me dissesse muito. Mas de repente um dia ouvi o Fredo Mergner tocar na televisão, era jazz tocado na guitarra, e aquilo soube-me muito bem. Foi assim como uma janela nova que se abriu para mim, e foi assim que eu fui parar ao jazz. Depois quando entrei na escola, tive a sorte de ser na altura em que o Zé Eduardo, o contrabaixista, ainda estava lá a dar aulas. E, durante um ano, aprendi de uma forma sui generis. Porque a escola funcionava na sala do Hot, os alunos sentavam-se nas mesmas mesas onde ainda hoje as pessoas se sentam para assistir aos concertos. Era ali que se processava tudo. Depois de estar no Hot, senti a necessidade de estudar música mais formalmente. E fui estudar guitarra clássica para a Academia dos Amadores de Música enquanto continuei no Hot.
– Essa aprendizagem mais formal, como tu dizes, serviu de complemento, ajudou-te a seres um músico mais multifacetado?
– Eu pertenço a uma geração em que se gostávamos de uma coisa tínhamos de ir à procura dela. E não havia um «pacote» que nos desse tudo o que queríamos. Hoje, se alguém quer estudar jazz inscreve-se numa escola onde está tudo mais ou menos formatado nesse sentido. Na altura, isso não havia. Se eu queria mais alguma coisa da guitarra que não fosse o modo tradicional do rock ou do jazz tinha de ir procurar outros sítios. Se calhar por isso eu sinto que, actualmente, não é tão fácil ser-se um músico multifacetado. Porque quando se entra numa escola, a escola está formatada naquele estilo ou naquele tipo de ensino e a paleta sonora pode não se conseguir alargar tanto.
– Isso não é necessariamente bom.
– Pois não, mas por outro lado as pessoas, dentro desse estilos, ficam mais especializadas, mais fortes...
– Mas tu és um músico mais abrangente, digamos...
– Como os meus gostos musicais se repartem por muitas coisas diferentes, a minha maneira de tocar também consegue viajar assim, de formas diferentes. E há uma coisa que eu uma vez li e em que penso sempre: é que quando se deu alguma revolução musical, as pessoas, os protagonistas ouviam coisas que não era suposto pertencerem a esse meio musical. O que o Paul McCartney e o John Lennon ouviam na altura dos Beatles não era provavelmente o que toda a gente ouvia naquela altura. O que o Miles Davis ouviu não era provavelmente o que os seus contemporâneos do jazz ouviam...
– E tu, o que é que ouves?
– Por acaso agora ando numa «crise», preciso de ouvir coisas diferentes. Ultimamente ouço bastante rock, às vezes procuro ouvir coisas que não conheço das novas gerações, às vezes descubro coisas antigas que não cheguei a conhecer. E ouço também jazz. Se bem que, no jazz, gosto mais de ouvir coisas mais antigas do que as que estão mais «na moda». Gosto do jazz que cheira àquelas fotos a preto e branco...
– Tu és um músico que trabalha com gente muito diferente. Estou a lembrar-me do Carlos Barretto, do Zé Salgueiro, do Janita, do José Mário Branco, da Maria João... Como é que conjugas essas diferenças todas em ti?
– De muita gente com quem eu tive o prazer de trabalhar, eu era já consumidor dos discos. Eram pessoas por quem eu nutria grande admiração. Musicalmente – e quanto mais velho estou, mais fácil é sentir isso – tento tocar da mesma maneira que em qualquer outra circunstância. Tento, de certo modo, canalizar esse meu eu para aquela música, em vez de propriamente me cingir ao estilo em que estou e ter que mudar a minha maneira de tocar em relação à pessoa A ou B com quem tenho de me inserir. Cada vez mais tento que seja igual a mim próprio e que possa tocar da mesma maneira como toco normalmente.
– Enquanto espectador, a sensação que tenho quando te vejo tocar é de uma grande entrega. Dá-me a ideia que estás tu, a música que estás a tocar e aquele grupo de pessoas, tudo num entrosamento muito grande...
– Isso é um grande elogio, mas pela parte que me toca, geralmente estou sempre com medo de me enganar... (risos) O que eu noto é que quanto mais velho estou, menos compartimentado estou. Dantas sentia, por vezes, que era o eu do rock, ou o eu do jazz, ou o eu das canções. Hoje em dia já não sinto essas separações tão visíveis.
– Já estiveste em vários projectos musicais. O mais recente é o TGB...
– O TGB é uma formação de sucesso artístico que começou há cerca de uns quatro anos. Quer dizer «tuba, guitarra e bateria». Foi uma coisa que começou com a ideia do Alexandre Frazão, um grande baterista, de fazer uma combinação pouco normal de instrumentos, e o que contribuía para isso não era a bateria nem a guitarra, era a tuba. Ainda por cima por ser um tubista virtuoso como o Sérgio Carolino. O grupo começou assim, e fizemos concertos ainda durante cerca de um ano, antes de gravarmos um disco. E continuámos sempre a tocar, se calhar por causa da originalidade. Mas, agora, creio que a originalidade já não é a pedra basilar do grupo. São mesmo as três pessoas que o compõem.
– Além de instrumentista, és também compositor...
– Eu considero-me mais instrumentista, mas é verdade que também componho. Fiz o «Filactera», um disco que é uma homenagem à banda desenhada. Foi uma maneira de eu, como compositor, não ter que pensar muito em escalas ou acordes... Às vezes é bom fazer música para um filme e, em vez de estar a pensar apenas em música, em notas, pensar em imagens. Nesse disco fiz uma viagem pelo meu imaginário mais juvenil e procurei pensar mais na banda desenhada, nas sensações que tinha tido quando li aqueles livros há muito tempo. Cada peça é dedicada a um herói ou a um autor de banda desenhada. Ultimamente tenho estado a fazer música para um pequeno filme de animação com desenhos dos André Letria, o que de certa forma fez-me reviver o «Filactera»
– És uma pessoa que vai buscar muitas motivações à literatura, às outras artes que não a música?
– Eu acho que isso é importantíssimo, e fiz isso com a banda desenhada. Fiz também uma vez um concerto em que eu tocava sozinho que era inspirado no D. Quixote, na altura da comemoração dos 400 anos.
– O Quixote remete-nos para a lógica do sonho...
– ...e das aventuras, é o grande livro de aventuras.
– Há alguns músicos que vivem muito confinados apenas ao universo da música, é uma «deformação» se calhar normal e comum a várias artes. Tu és um tipo com outros interesses artísticos para lá da música?
– Infelizmente, nos últimos tempos tem sido assim também comigo. Não tenho tido tempo para ler muito, às vezes ainda consigo ver alguns filmes... Mas tenho outros interesses, sim. Estou, com muito orgulho, num projecto de dança com coreografia de Madalena Vitorino e música do Carlos Bica (somos os dois a tocar), e é bom estar numa coisa em que não existe apenas a nossa música, mas também não é só um bailado, é a mistura das duas coisas. É bom fazer música, mas estar a pensar mais nas emoções que se estão a receber do outro lado.
– E quanto a esta «estranha forma de vida» que é a dos músicos, dos artistas em geral? És dos que se queixam muito?
– Há alturas em que há menos trabalho, outras alturas em que há trabalho a mais. Geralmente quando há pouco trabalho não se tem dinheiro, mas tem-se tempo para programar o futuro. É um modo de vida diferente, eu não gosto muito de me queixar. É como diz o Sérgio Godinho: «Só neste país é que se diz só neste país». Às vezes temos muita tendência para nos queixarmos, para dizer mal. Eu, agora, mesmo com coisas que não são assim tão boas, tento encontrar alguma coisa de positivo. Mas também é verdade que, no estado geral do país, se calhar não há assim tanta razão para isso. Mas não vou entrar em grande cataclismos, apesar de tudo.
– Um dos teus projectos mais recentes teve a ver com a música de Zeca Afonso: o espectáculo, que vai ser também um disco, com a Cristina Branco, onde tiveste uma participação importante ao nível dos arranjos...
– Tivemos todos, nesse projecto.
– Há ali alguns arranjos bastante arrojados, que se calhar vão criar alguns incómodos...
– Durante os ensaios, eu sentia que algumas coisas que fazia tinham um som um pouco «americano», e às vezes brincava e dizia que aquilo era uma espécie de Zeca Afonso misturado com Norah Jones. Mas bem vistas as coisas, já muitas vezes em discos do próprio Zeca ele está próximo disso. Num disco de que eu gosto muito, o «Galinhas do Mato», há um tema, o «Década de Salomé», onde o Júlio Pereira toca banjo, é um sonoridade que de certa forma já existe em coisas que o Zeca fazia.
– E agora?
– Não sou assim muito de fazer projectos. Provavelmente vou querer fazer outro disco. Mas eu trabalho muito como sideman e começo a ter a agenda muito ocupada para trabalhar as minhas coisas. Eu gosto de trabalhar com outras pessoas, tenho a sorte de trabalhar com pessoas de que sou fã, mas às vezes se calhar não tenho tanto espaço para as minhas coisas. Gostava de fazer um grupo que fosse guitarra e uns três sopros...
– Com músicos novos?
– Há muitos bons músicos novos. E, na minha área, há uma geração nova de guitarristas de jazz que são grandes talentos.
– Não és dos que dizem que no teu tempo é que era bom?
– Não, no meu tempo era fácil, porque havia músicos que eu admirava muito, mas havia muito menos músicos. Hoje há mais. E, no jazz, há coisas incríveis a acontecer. Gosto mais desta época do que de há uns dez anos atrás.

Autores | Abr-Jun 2007 
Viriato Teles